quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Berlindó Boy

Esta semana descobri um texto escrito no meu primeiro ano de Universidade um texto cuja última leitura que lhe fiz foi provavelmente no dia em que o entreguei ao professor.
Pérolas como estas são um mimo quando retiradas do fundo da gaveta.

O seguinte texto narra assim um jogo de berlindes entre crianças no recreio:


JOÃO está rodeado por crianças, todas elas eufóricas. Numa televisão decorre um jogo do Mundial de Futebol na África do Sul, o som das vuvuzelas ecoa por todos os lados, é impossivel as pessoas ouvirem-se umas às outras no meio de tanta confusão. As crianças no entanto nenhuma liga ao futebol.

 Na cabeça de João não há qualquer som, ele está concentrado, o seu objectivo está à sua frente, ele tal como a selecção do seu país, tem uma responsabilidade enorme em cima dos ombros e toda a excitação à sua volta acontece única e exclusivamente por causa de si. No recreio daquela escola primária as crianças brincam, pulam e festejam mas João é único. Ele está sereno e sorridente.

João e outros rapazes formam um círculo em volta de pequenas covas no chão. Presa a uma das paredes está uma faixa onde se lê “Final do Campeonato Regional de Berlindes da Escolinha João Baião”. Este não é o seu primeiro jogo nem a sua primeira final, João é veterano e exige o respeito que mereceu ao longo de intervalos inteiros de vinte cinco minutos a lutar para que o seus berlindes fossem melhores que os dos outros. Mas apesar de veterano, João não é um vencedor. Uma mancha, maior que qualquer mancha de sopa feita por um descuido no refeitório, a mancha da vergonha. Ainda há dois anos era uma jovem promessa, é assim que as coisas funcionam num momento temos os sonhos e desejos de um recreio inteiro num lançamento de berlinde e no outro somos apenas mais um concorrente para ser afastado. João não se vê assim e naquele seu último ano de primária ele será rei ele será vencedor. Esta será a conquista do título.

Já se passaram quase dez minutos e nenhum dos seis concorrentes ainda se atreveu a arriscar. Jogadas sem interesse e lançamentos que não dão em nada, ninguém ainda foi eliminado. Mas o que é que eles pensam? Que o intervalo dura para sempre? Que os professores compreendem a paixão pelo berlinde? Nada disso. As condições são duras aqui mas chegou o momento. João lança-se ao ataque, ele tem a escola a apoia-lo, aqueles são os seus colegas e Zézinho, o velho rival que à sua frente o encara, parece não estar com a pontaria que em anos passados o tornaram uma lenda.

Um dos rapazes mais novos ali presentes corre em volta dos jogadores aos berros com os braços no ar. Pouco respeito ao miúdo, é o árbitro a quem ninguém liga mas cujas desprezadas indicações são dadas com uma paixão rara entre os adeptos do berlinde. Ao ver as jogadas vitoriosas de João o Árbitro informa que o saco deste tem mais bolas que os dos seus oponentes. A multidão dispersa, uma professora furiosa aparece e leva o Árbitro para o castigo acusando-o de má educação. Agora sim o ambiente ficou tenso, não há ninguém para ditar as regras ninguém para mandar dar uma volta e mais importante, não há ninguém para desprezar. Se aquele Árbitro era um cromo era um cromo preciso e precisos têm de ser também os jogadores. Todos eles sabem o que fazem e a maioria já esteve ali antes. Mas um senão: João.

Uma rima destas não se pode levar com leveza. Não só não tem nada de especial como compromete a séria reputação de quem está a escrever este texto. O mais importante no entanto é que move a acção e o senão continua a ser João. Certo?

Certo. João está em grande forma e, atirando o seu famoso Mini-Berlinde-Dourado, elimina dois oponentes, deixando as covas só com cinco berlindes adversários. O som das raparigas histéricas e das vuvuzelas diminui um pouco, aquilo foi uma surpresa e João, que sorri, pode descansar enquanto os seus oponentes se vão eliminar até chegar de novo a sua ronda. Um por um é isso que acontece, em cinco minutos os buracos esvaziam-se sem que João tenha de se mexer, o recreio volta a ficar eufórico, as raparigas largam as bonecas, tentam tocar nas estrelas mas João não liga. Manter o perfil, sereno, ele não está ali para assinar bonecas Barbie, ali não há tempo para se ser famoso, só para ganhar.

A sua vez chega de novo. O tempo está-se a esgotar, o enorme relógio na parede principal da escola indica que já não falta muito tempo até a aula de português começar e se há uma língua que não espera é a de Camões. João agarra numa das suas Bazucas e faz algo que maravilha até uma funcionária ali ao pé: não só elimina por completo outro oponente como coloca o seu berlinde bem no centro da cova. Cova? Qual quê. A Arena.

Os olhos de Zézinho não escondem que a sua confiança já há muito desapareceu. Ele limpa o suor da testa, foi uma ronda difícil, demasiadas perdas para o antigo campeão. Ele não aguenta, levanta-se e vai beber água ao bebedouro. Todos param, escutam e olham, Zézinho não é um sinal de trânsito mas aquele acto, é fraqueza.

João por sua vez sorri, ao fundo ele já ouve as vuvuzelas e os gritos dos seus apoiantes, os seus dedos doem mas a constituição táctica do jogo à sua frente mostra-lhe a ele e a todos à sua volta que a vitória não pode escapar. Nas duas rondas seguintes João encontra dificuldades. Numa a sua Bazuca sai da Arena num golpe de sorte que o seu adversário festeja com alegria e noutra o seu Mini-Dourado não tem hipotese contra a Bazuca-Luso-Descendente de Zézinho. Mas João, analisando o conteúdo farto do seu saco, analisa o jogo e pensa nas suas hipóteses. Pegando num berlinde completamente banal e num acto histórico que leva até os alunos mais velhos a espreitarem pelas janelas, elimina outro adversário deixando apenas Zézinho para enfrentá-lo.

Que jogada meus amigos! Passem um replay metam em slow mo isto tem de ser visto mais que uma vez. Facto histórico: a última eliminação de quatro adversários feita por um só jogador aconteceu há três anos pelo lendário Vitinho. "João ainda usava fraldas” relata a colega Matilda para o seu Querido Diário.

João olha Matilda com atenção. Uns dez anos mais velhos e haveria com certeza tensão sexual entre os dois mas não com esta idade. Aqui há apenas criancice e João deixa-se abraçar pelos colegas, pega numa vuvuzela e parte-a em dois podendo agora libertar a sua fúria daquele som que tem evitado durante toda a partida.

“Lenda” é o estatudo, “Badamerda Mothafucka” é a expressão.

O jogo volta ao normal, apenas João e Zézinho. O Árbitro volta do castigo de onde fugiu e esconde-se entre as raparigas indicando o começo do final. O saco cheio de João permite-lhe jogar berlindes mais fracos testando as forças de Zézinho mas a verdadeira luta começa quando ambos usam os seus maiores esféricos. As covas de terra vermelha ficam maiores, as feridas nos dedos dos jogadores impedem que eles lancem com muita força mas mesmo assim o jogo é renhido.

Todos os berlindes que João elimina Zézinho recupera a seguir. Quando a Professora finalmente chama para a aula ninguém se mexe, nem a ouvem. Mas Zézinho distrai-se e olha para trás por um segundo. João aproveita e com enorme técnica lança um berlinde que acaba com a defesa do adversário deixando-o à sua mercê. Zézinho tenta não ficar emocional de novo, afinal o seu nome está no quadro de vencedores dos anos passados. João está a uma jogada bem pensada de acabar com aquilo. Ele pega no seu mais importante berlinde, limpa-o e coloca-o com cuidado na ponta dos dedos. As crianças à volta destes quase que caem para cima dos dois, tudo é silêncio só se ouvem as respirações de João e Zézinho.

João atira finalmente o berlinde, todos o seguem atentamente enquanto este raspa no solo, atinge um pedra pequena que ninguém consegue sequer ver e se desvia da trajetória, falhando. Todos estão surpresos e Zézinho não pode acreditar. Ele dá um pulo e começa o contra-ataque de forma imediata, acabando uma a uma com as jogadas de João que está agora desesperado. O jogo mudou e as claques também. João está sozinho na luta.

O seu saco está quase vazio e se perder aquele encontro não é só a reputação que se vai mas também todos os seus berlindes. João não tem nada a esconder esta á a última jogada, um último grito de euforia e um último falhanço. João perde o jogo. Zézinho é rodeado por colegas, João está de joelhos derrotado. Zézinho pega nos seus berlindes, nos do saco de João e começa a correr.

João não pode acreditar, algo, uma fúria imensa apodera-se de si. João quebra várias bonecas e um baloiço e começa a perseguir Zézinho pelo recreio. Ele vai apanha-lo, alcança-o rápido e quando dá o impulso para saltar falha e cai ao chão. É aquilo o final de João?

A Professora aproxima-se dele furiosa e pega em João pela orelha. Ele olha para o chão e vê, mágico e poderoso, o seu saco cheio de berlindes. Ele esforça-se e agarra-o. A sua orelha está vermelha e dói mas que se lixe, este é um castigo que ele vai merecer, um que ele vai encarar de sorriso nos lábios pois mesmo que perdendo contra Zézinho ou qualquer outro, enquanto houver alguém mais poderoso que todas as crianças naquele recreio não há nada que possam fazer e resta a João aproveitar-se desse facto para ficar com todos os seus berlindes.

Tiago Lopes